quarta-feira, 5 de junho de 2013

A Apneia Fantástica de Ramozin

-Não que se possa mensurar o tamanho da entrega de cada um, mas exatamente por isso deveria ser considerado um ato sacro. Algumas situações mereciam ser proibidas de existir-
  
Ramozin acordou naquela manhã num susto. O ar estava espesso e mais denso que o normal. Uma penumbra esbranquiçada cobria seu quarto, ainda olhou pela janela e percebeu que o céu estava baixo. Um beija-flor o encarava, mas sua cabeça latejava e com os olhos envesgados não houve consciência para estranhar um beija-flor pairando na janela do 18° andar.   

O Gato Negro no criado mudo estava pelo último terço, na barra de chocolate a silhueta dos seus dentes. Na bancada papéis amassados, canetas coloridas, revistas, impressões, rascunhos. Em meio a todos, um rabo de peixe se perdia em mar de traços e pó de borracha.

Sentou-se e buscou o celular. “Vivo?”, perguntavam. Apoiou o aparelho na cama e uma onda súbita de choro o tomou intensamente. Não sabia dizer exatamente porquê chorava, mas a pressão na sua nuca era tamanha que resolveu não prender, pelo menos dessa vez. “ Olhos embotados de cimento e lágrima”, pensou. Enxugou o rosto após alguns soluços e fingiu estar inteiro para não adentrar assuntos que julgava desnecessários para qualquer outro que não si mesmo.   

Ramozin era um homem interessante, mas teimava em fazer escolhas ruins. Não que sua intenção não fosse nobre, mas suas atitudes certamente não eram. Na burocracia da vida era um CPF exemplar: trabalhava duro, exigia de si, dividia coisas em parcelas eficientes, seus passos condiziam com suas pernas. Cumpria as funções de filho/sobrinho/neto com presença relativa, e se não era o corpo, um cheque o representaria para acalmar os aflitos. Não era uma pessoa fria, mas a individualidade armara acampamento no seu cotidiano. Tinha vocação para a solidão e preservava seu espaço, como qualquer bom leão. Sua crença maior era o suor. A fé até passou por sua adolecência, mas não foi feito para acreditar. Apenas agia de forma fixa, se enroscando no que esboçava interesse, principalmente se envolvesse um par de olhos claros. Então enroscava-se inevitavelmente.

Entretanto Ramozin nunca entendeu a responsabilidade de envolver alguém, o fazia de forma automática. Não tinha maturidade emocional, então fazia e depois que fazia não sabia mais o que fazer. Assim pulava de colo em colo, acumulando funções nas vidas alheias sem necessariamente ter a consciência disso. Despertava afetos sem intenção de atendê-los, e passado o prazer restava a consciência - e o celular - que lhe incomodavam com pendências emocionais espalhadas por aí. Já acumulara várias delas, já não conseguia dar conta de todas, já enroscara a corda no pescoço de forma lenta; agonizava em suas próprias decisões: “Mais eficaz era tomar um gole de veneno”, refletia. E agora mais que nunca precisava emergir.

Dentro de si uma vibração nascia. Olhou aquele rabo de peixe infindo e sentiu inveja. As escamas escorregavam pelas pontas dos seus dedos e Ramozin desejava deslizar pra longe de si, agarrar-se na cauda de uma sereia e se permitir fluir.

Ouviu som de mar. Estava no meio de uma metrópole, não havia praia por pelo menos 90km. Não deu crédito aos ouvidos então um arrepio caminhou por seus braços. Desconfiou da janela aberta, mas antes de conseguir fechá-la, o estrondo de uma onda quebrou em seus ouvidos. Uma voz doce chamou seu nome... “Não é minha hora”, decidiu. Pegou o celular e mandou mensagens distintas para as ansiosas, em protesto.

Não era sua culpa e sim sua natureza, desses exemplos que vêm de casa e nos está instrínseco em tal grau que nem percebemos sua influência em nossos atos. Ramozin fora programado para ser confuso, não sabia ser um problema apenas seu e agora começava a vislumbrar seu futuro. Não queria mais ser o que já era, ainda com vontades fixas e comportamentos cíclicos, cultivava verdadeiro desconforto a mudanças, principalmente internas. Difícil mover-se do exato meio do olho do furacão, onde é o ar é parado. Um passo para o lado e a ventania te desequilibra. Perder o controle nunca estava em seus planos. 

Entrou no chuveiro, abriu a torneira e a água que dessa vez lhe batizava era salgada. Ao escorrer por sua língua e sentir o gosto salobro Ramozin deu um pulo desesperado, derrubou todos os shampoos da prateleira do box, correu nu pelo corredor até seu quarto, que continuava coberto de uma névoa incomum, cada vez mais leitosa. Parou desorientado, observou as mãos e pode perceber a pele entre seus dedos um pouco mais fina. Eram membranas. Então se examinou como podia e percebeu mais algumas metamorfoses em seu corpo. A água fora absorvida por sua pele, não estava mais molhado. Pequenos cortes em seu pescoço abriam brânquias, seus pés estavam mais pontudos. Olhou para a bancada e o rabo de peixe esboçado agora tinha cabeça; um olho azul, um olho verde. Ramozin estava surtado em novidades, não sabia o que fazer. Sentiu seu coração pulsar na garganta, dificultando sua respiração. Quando já se encontrava sufocado de boca aberta ouviu a voz doce chamar seu nome novamente, dessa vez com alguma melodia. “Ainda não”, teimou. 

Seguindo o arrepio que domara sua espinha, Ramozin voltou para o chuveiro e agora queria transformá-lo num aquário. “Enquanto o gelo derrete, a água vai subindo” e conforme a água subia por suas pernas, escamas brotavam finalmente. Aquela transformação acontecia diante de seus olhos, doía e não havia nada que ele pudesse fazer. Quando a água atingiu sua cintura, não havia mais sexo entre suas coxas, suas pernas estavam unidas, era impossível se manter em pé e ao cair, mergulhou inteiro naquele pesadelo, deslizando pelo azulejo amarelado do banheiro como quem nunca fez outra coisa, senão deslizar. Agora embaixo d’água respirava fundo, então nadou.

Atravessou sua casa, submerso. Já não se perguntava o porquê de tudo aquilo, não buscava uma resposta lógica pros acontecimentos. Sabia que era assim que deveria ser, era assim que já era. Da janela da sala pode ver o fundo do oceano onde seu prédio estava sediado, um azul maciço indesvendável. Era um movimento paralelo a outras pessoas, criaturas novas surgindo e saindo pelas janelas de casas também submersas. Um peixe cruzou seu olhar. Tinha um olho verde e um olho azul. Era o seu desenho que ganhava vida e o guiaria para longe dali. Sem repensar, Ramozin o seguiu veementemente e agora nadava também entre mulheres: Iaras, Jussaras, Janaínas... Era um mundo inteiro de ninfas perigosas, mentirosas, irresistíveis. Carregavam consigo náufragos, desorientados, marinheiros indecisos, homens mal resolvidos, ingênuos. Ramozin então reconheceu a voz doce que o chamara e não pode evitar a hipnose: o som vinha da sereia mais intrigante que sua imaginação permitiria criar. Não saberia descrevê-la, era um ser sensorial e encantador, de cauda longuíssima que brotava, não de sua cintura, mas de sua cabeça. Se misturava em cabelos ondulados que boiavam em torno do seu corpo. Seus seios apontavam para o ego de Ramozin, eram como frutas maduras, estava completamente nua. Os olhos da ninfa eram o abismo que qualquer homem teme. Mas Ramozin não tinha mais medo então chegou bem perto, absorto, embalado pela melodia dulcíssima que aquela criatura misteriosa emanava. 
Precisaria beijá-la, seria o último de sua vida. Então, envolto por uma moleza descomunal, desmaiou nos braços mais delicados que já tocaram alguém. Ainda pode sentir unhas penetrando a pele de suas costas, cabelos entrando por sua garganta, melodia invadindo seus ouvidos. Completamente envolvido e sem forças, foi beijado pela sereia com hálito de morte e morreu em seus braços, aprisionando sua alma ao fundo do mar para todo o sempre.

Num delírio sufocante, acordou. Olhou em volta. O Gato Negro estava lá pelo último terço, os rascunhos, o rabo de peixe inacabado. Seu celular vibrou: “vivo?”, perguntavam. Largou o aparelho no criado mudo, juntou umas mudas de roupa e foi pro mar atrás da sereia de voz doce.