terça-feira, 26 de novembro de 2013

embaralho

as coisas que eu tenho pra te dizer não têm formato nem nome nem cabem na boca
é um emaranhado de pensamentos que se atropelam e desmentem-se despreocupadamente
se fossem ditos, seriam mudos.
se fossem escritos, seriam espaços.
se fossem respirações, seriam pausas.





paleta complexa
é amizade-colorida
só pinta
se for preto no branco 



quinta-feira, 21 de novembro de 2013

língua viva


Eram dois, mas sabiam-se mais. Cheiravam-se sempre que possível, odor é gosto e aquele não haveria de desaparecer facilmente da língua. Logo aquele, e justamente aquele que ardia e queimava por todo o caminho até os pulmões. Talvez se houvesse menos dano à saúde o olfato não lhe fosse curioso.
Fato era: um odor tanto quanto febril foi inventado naquele instante. Daí fez-se o termômetro e para cada vida, uma validade.
Costas para costas, caminharam em sentidos opostos, contando os passos para sacarem suas habilidades. Já no silêncio, olharam para trás, aquela olhadela derradeira cheia de receio e certeza ao mesmo tempo. Não esperavam cruzar olhares, seria movimento impiedoso, mas lá olhavam-se agora.
Haviam se acalmado em seus peitos, mas o calento estava com jeito de chama; até fica estática porém nunca para de queimar.
Voltar o nariz para frente agora seria uma dor menos aguda, mais macia, mas não menos dor. 
Gente ousada é essa que se aconchega no embalo do torto, respira combustível e mantém a língua viva.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

meu escândalo
roda sua baiana
de santo
dor de cabeça
é você latejando
nas minhas ideias 
acordou sem ar
descobriu que ele
também era oxigênio

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

chá de erva-doce

chá de erva-doce
meu paladar 
em suspensão

toca
vento
assopra-me pro chão

sigo sua nota
e toda imensidão

baila-mola
sempre em contra mão

somos rima
mais feliz que em confusão

e só uma xícara
acalenta o coração

quarta-feira, 5 de junho de 2013

A Apneia Fantástica de Ramozin

-Não que se possa mensurar o tamanho da entrega de cada um, mas exatamente por isso deveria ser considerado um ato sacro. Algumas situações mereciam ser proibidas de existir-
  
Ramozin acordou naquela manhã num susto. O ar estava espesso e mais denso que o normal. Uma penumbra esbranquiçada cobria seu quarto, ainda olhou pela janela e percebeu que o céu estava baixo. Um beija-flor o encarava, mas sua cabeça latejava e com os olhos envesgados não houve consciência para estranhar um beija-flor pairando na janela do 18° andar.   

O Gato Negro no criado mudo estava pelo último terço, na barra de chocolate a silhueta dos seus dentes. Na bancada papéis amassados, canetas coloridas, revistas, impressões, rascunhos. Em meio a todos, um rabo de peixe se perdia em mar de traços e pó de borracha.

Sentou-se e buscou o celular. “Vivo?”, perguntavam. Apoiou o aparelho na cama e uma onda súbita de choro o tomou intensamente. Não sabia dizer exatamente porquê chorava, mas a pressão na sua nuca era tamanha que resolveu não prender, pelo menos dessa vez. “ Olhos embotados de cimento e lágrima”, pensou. Enxugou o rosto após alguns soluços e fingiu estar inteiro para não adentrar assuntos que julgava desnecessários para qualquer outro que não si mesmo.   

Ramozin era um homem interessante, mas teimava em fazer escolhas ruins. Não que sua intenção não fosse nobre, mas suas atitudes certamente não eram. Na burocracia da vida era um CPF exemplar: trabalhava duro, exigia de si, dividia coisas em parcelas eficientes, seus passos condiziam com suas pernas. Cumpria as funções de filho/sobrinho/neto com presença relativa, e se não era o corpo, um cheque o representaria para acalmar os aflitos. Não era uma pessoa fria, mas a individualidade armara acampamento no seu cotidiano. Tinha vocação para a solidão e preservava seu espaço, como qualquer bom leão. Sua crença maior era o suor. A fé até passou por sua adolecência, mas não foi feito para acreditar. Apenas agia de forma fixa, se enroscando no que esboçava interesse, principalmente se envolvesse um par de olhos claros. Então enroscava-se inevitavelmente.

Entretanto Ramozin nunca entendeu a responsabilidade de envolver alguém, o fazia de forma automática. Não tinha maturidade emocional, então fazia e depois que fazia não sabia mais o que fazer. Assim pulava de colo em colo, acumulando funções nas vidas alheias sem necessariamente ter a consciência disso. Despertava afetos sem intenção de atendê-los, e passado o prazer restava a consciência - e o celular - que lhe incomodavam com pendências emocionais espalhadas por aí. Já acumulara várias delas, já não conseguia dar conta de todas, já enroscara a corda no pescoço de forma lenta; agonizava em suas próprias decisões: “Mais eficaz era tomar um gole de veneno”, refletia. E agora mais que nunca precisava emergir.

Dentro de si uma vibração nascia. Olhou aquele rabo de peixe infindo e sentiu inveja. As escamas escorregavam pelas pontas dos seus dedos e Ramozin desejava deslizar pra longe de si, agarrar-se na cauda de uma sereia e se permitir fluir.

Ouviu som de mar. Estava no meio de uma metrópole, não havia praia por pelo menos 90km. Não deu crédito aos ouvidos então um arrepio caminhou por seus braços. Desconfiou da janela aberta, mas antes de conseguir fechá-la, o estrondo de uma onda quebrou em seus ouvidos. Uma voz doce chamou seu nome... “Não é minha hora”, decidiu. Pegou o celular e mandou mensagens distintas para as ansiosas, em protesto.

Não era sua culpa e sim sua natureza, desses exemplos que vêm de casa e nos está instrínseco em tal grau que nem percebemos sua influência em nossos atos. Ramozin fora programado para ser confuso, não sabia ser um problema apenas seu e agora começava a vislumbrar seu futuro. Não queria mais ser o que já era, ainda com vontades fixas e comportamentos cíclicos, cultivava verdadeiro desconforto a mudanças, principalmente internas. Difícil mover-se do exato meio do olho do furacão, onde é o ar é parado. Um passo para o lado e a ventania te desequilibra. Perder o controle nunca estava em seus planos. 

Entrou no chuveiro, abriu a torneira e a água que dessa vez lhe batizava era salgada. Ao escorrer por sua língua e sentir o gosto salobro Ramozin deu um pulo desesperado, derrubou todos os shampoos da prateleira do box, correu nu pelo corredor até seu quarto, que continuava coberto de uma névoa incomum, cada vez mais leitosa. Parou desorientado, observou as mãos e pode perceber a pele entre seus dedos um pouco mais fina. Eram membranas. Então se examinou como podia e percebeu mais algumas metamorfoses em seu corpo. A água fora absorvida por sua pele, não estava mais molhado. Pequenos cortes em seu pescoço abriam brânquias, seus pés estavam mais pontudos. Olhou para a bancada e o rabo de peixe esboçado agora tinha cabeça; um olho azul, um olho verde. Ramozin estava surtado em novidades, não sabia o que fazer. Sentiu seu coração pulsar na garganta, dificultando sua respiração. Quando já se encontrava sufocado de boca aberta ouviu a voz doce chamar seu nome novamente, dessa vez com alguma melodia. “Ainda não”, teimou. 

Seguindo o arrepio que domara sua espinha, Ramozin voltou para o chuveiro e agora queria transformá-lo num aquário. “Enquanto o gelo derrete, a água vai subindo” e conforme a água subia por suas pernas, escamas brotavam finalmente. Aquela transformação acontecia diante de seus olhos, doía e não havia nada que ele pudesse fazer. Quando a água atingiu sua cintura, não havia mais sexo entre suas coxas, suas pernas estavam unidas, era impossível se manter em pé e ao cair, mergulhou inteiro naquele pesadelo, deslizando pelo azulejo amarelado do banheiro como quem nunca fez outra coisa, senão deslizar. Agora embaixo d’água respirava fundo, então nadou.

Atravessou sua casa, submerso. Já não se perguntava o porquê de tudo aquilo, não buscava uma resposta lógica pros acontecimentos. Sabia que era assim que deveria ser, era assim que já era. Da janela da sala pode ver o fundo do oceano onde seu prédio estava sediado, um azul maciço indesvendável. Era um movimento paralelo a outras pessoas, criaturas novas surgindo e saindo pelas janelas de casas também submersas. Um peixe cruzou seu olhar. Tinha um olho verde e um olho azul. Era o seu desenho que ganhava vida e o guiaria para longe dali. Sem repensar, Ramozin o seguiu veementemente e agora nadava também entre mulheres: Iaras, Jussaras, Janaínas... Era um mundo inteiro de ninfas perigosas, mentirosas, irresistíveis. Carregavam consigo náufragos, desorientados, marinheiros indecisos, homens mal resolvidos, ingênuos. Ramozin então reconheceu a voz doce que o chamara e não pode evitar a hipnose: o som vinha da sereia mais intrigante que sua imaginação permitiria criar. Não saberia descrevê-la, era um ser sensorial e encantador, de cauda longuíssima que brotava, não de sua cintura, mas de sua cabeça. Se misturava em cabelos ondulados que boiavam em torno do seu corpo. Seus seios apontavam para o ego de Ramozin, eram como frutas maduras, estava completamente nua. Os olhos da ninfa eram o abismo que qualquer homem teme. Mas Ramozin não tinha mais medo então chegou bem perto, absorto, embalado pela melodia dulcíssima que aquela criatura misteriosa emanava. 
Precisaria beijá-la, seria o último de sua vida. Então, envolto por uma moleza descomunal, desmaiou nos braços mais delicados que já tocaram alguém. Ainda pode sentir unhas penetrando a pele de suas costas, cabelos entrando por sua garganta, melodia invadindo seus ouvidos. Completamente envolvido e sem forças, foi beijado pela sereia com hálito de morte e morreu em seus braços, aprisionando sua alma ao fundo do mar para todo o sempre.

Num delírio sufocante, acordou. Olhou em volta. O Gato Negro estava lá pelo último terço, os rascunhos, o rabo de peixe inacabado. Seu celular vibrou: “vivo?”, perguntavam. Largou o aparelho no criado mudo, juntou umas mudas de roupa e foi pro mar atrás da sereia de voz doce.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

não mais

Hoje o dia foi confuso e agora eu gostaria de um pouco de paz.

Não, não consegui almoçar onde disse que iria e também não consegui passar no supermercado como combinado. A conta de gás está atrasada, a propósito.

Não, não peguei as crianças na escola. As deixei lá, esqueci-me! Eu acho que não as levei para a escola também, devem estar a brincar na sala.

Não, eu não fui trabalhar. Sabia que trombaria com o Arnaldo e desde a promoção tem me irritado muito. Sorri demais.

Também não compareci a audição como deveria, você deve ter reparado. Eu sei que isso me custará algumas penas; talvez a casa de Búzios, a guarda dos meninos, uma pensão abusada... Eu não ligo.

Hoje eu não saí de casa. Na real hoje eu nem saí da cama.
Não tive coragem de pisar no chão frio, o café e as urgências do cotidiano acordariam meu corpo, me deixariam desperto.
Hoje eu não pude despertar.

A única imagem que repassa na minha mente são suas calcinhas dentro daquele saco de lixo azul.
Que pressa para ir embora. Que saco infeliz.

Hoje não era dia para separações.

Hoje você devia se aninhar no meu peito para que eu pudesse me perder nos seus cabelos e sentir seu cheiro de mulher maldita.

Mas, hoje nunca mais.   

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

ode que não foi


Marília era comum.
Nasceu em uma família morna no interior do Rio de Janeiro e se mudou pra cidade quando ainda tinha dente de leite. Vivia uma fase de pseudo liberdade pós carteira de motorista e naquela terça chuvosa acordou meio barro - meio tijolo e resolveu sair de casa sem dar bom dia.

Do outro lado da cidade, Jorge que vinha de família cética e leitora de poesia de jornal de domingo, experimentava uma fase meio lobo. Deixou a barba crescer e seus cabelos estavam um pouco mais animados como se quisesse realçar um cheiro natural de testoterona. Mas não foi até aquela terça chuvosa no Starbucks de Ipanema que Jorge pode reparar o olfato sensível de certa moça praquela imposição de macheza toda.

Marília se ocupava de decidir se pediria leite de vanila no café ou não e sentiu uma vontade súbita de olhar pra trás. Jorge estava ali encarando sua nuca e agora surpreso por ser pego em flagra ficou inquieto sem saber o que fazer com sua curiosidade. Marília não entendeu a reação daquele homem e tornou a olhar pra trás em busca de pistas. Encaram-se desavergonhadamente por 3 segundos e a crítica os posicionou de volta na fila. Jorge sentiu o cheiro que vinha do cabelo loiro de Marília. Nunca se atraia por loiras, são sempre tão aguadas, mas dessa vez se pegou com vontade de enfiar o nariz naquelas mexas amareladas. Se inclinou de leve num ato corajoso. "Madeira", pensou. Marília então passou a mão pelo cabelo e esbarrou com o nariz de Jorge quase descansado ali.

- Desculpa!, disse Jorge constrangidíssimo. Desculpas, eu não... eu ...foi mal.

Marília observou a cara de pau daquele homem barbudo e ficou surpresa com sua falta de susto. Voltou-se pra frente e deu um passo pra trás - em um ato mais abusado que corajoso- encaixando sua nuca no rosto de Jorge, que recebeu aquele passo como uma permissão sincera, não sentiu mais culpa ou constrangimento, agora só respirava fundo.

- MARÍLIA TALL CAFÉ VANILA! gritou a atendente.

Marília buscou seu pedido, sentou-se em uma poltrona confortável, puxou um livro pra inglês ver e esperou alguma coisa. Jorge foi o próximo e além do café habitual levou um muffin de goiabada para viagem. Não se sentaria ali, iria embora com pressa atrasado para algum momento importante, uma reunião talvez.
Passou pela poltrona e já na janela do lado de fora a olhou novamente. Marília sentava com a coluna ereta quase tensa e aquela última troca de olhares deixaria um incômodo. Jorge seguiu seu caminho de forma automática e agora quem se inclinava era Marília, amassada no vidro da janela ainda pode vê-lo arrancar pela Farme de Amoedo em um Fox vermelho.

Tempos depois Marília já não tinha a lembrança do rosto de Jorge. Agora era pedagoga, dava aula pra crianças em fase de alfabetização, vivia cheirando a trakinas e com massinha de modelar embaixo das unhas. Namorou um rapaz chamado Felipe por uns meses e sem se perceber pedia que ele deixasse a barba crescer com frequencia.

Em uma noite de quinta, por insistência das amigas, saiu para beber em um bar no Baixo Botafogo. Não era de seu costume, não quebrava a rotina com facilidade. Marília não pode evitar o descontrole alcólico e acordou na caçamba de uma D-20 cabine simples quente de sol, com a calcinha pelos tornozelos no aterro do Flamengo. Sua bolsa estava ali com seus pertences e segundo depoimentos de uma amiga, Marília saiu de carona com o magrelo playboy da mesa ao lado por livre e espontânea vontade. Com o cabelo em desalinho e uma ressaca moral fortíssima, Marília calçou o sapato e foi embora sem conferir se havia alguém na cabine.

Caminhando embaixo de sol, Marília sentiu sua vida encolher. "Um passo pra trás", pensou exigente e ao quase ser atropelada por um Fox vermelho lembrou que daquela terça chuvosa em diante passara a  procurar o rosto esquecido de Jorge dentro de todos os Foxes vermelhos com/sem bagageiro que cruzavam seu caminho. Incondicionalmente, era quase uma superstição.
Sem quebrar protocolo algum, Marília não abriu exceção praquela manhã torta e ao atravessar fora do sinal na Almirante Tamandaré distraída em busca de um táxi vazio se perdeu em idéias inférteis olhando através do para brisa do seu algoz, que conseguiu frear a tempo. Estava tão distante de si que não pode reparar o Siena branco que vinha atrás com Jorge no volante já sem barba e aborrecido por não lembrar se aquela loira amadeirada do Starbucks tinha uma ou duas pintas no pescoço.