quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

não mais

Hoje o dia foi confuso e agora eu gostaria de um pouco de paz.

Não, não consegui almoçar onde disse que iria e também não consegui passar no supermercado como combinado. A conta de gás está atrasada, a propósito.

Não, não peguei as crianças na escola. As deixei lá, esqueci-me! Eu acho que não as levei para a escola também, devem estar a brincar na sala.

Não, eu não fui trabalhar. Sabia que trombaria com o Arnaldo e desde a promoção tem me irritado muito. Sorri demais.

Também não compareci a audição como deveria, você deve ter reparado. Eu sei que isso me custará algumas penas; talvez a casa de Búzios, a guarda dos meninos, uma pensão abusada... Eu não ligo.

Hoje eu não saí de casa. Na real hoje eu nem saí da cama.
Não tive coragem de pisar no chão frio, o café e as urgências do cotidiano acordariam meu corpo, me deixariam desperto.
Hoje eu não pude despertar.

A única imagem que repassa na minha mente são suas calcinhas dentro daquele saco de lixo azul.
Que pressa para ir embora. Que saco infeliz.

Hoje não era dia para separações.

Hoje você devia se aninhar no meu peito para que eu pudesse me perder nos seus cabelos e sentir seu cheiro de mulher maldita.

Mas, hoje nunca mais.   

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

ode que não foi


Marília era comum.
Nasceu em uma família morna no interior do Rio de Janeiro e se mudou pra cidade quando ainda tinha dente de leite. Vivia uma fase de pseudo liberdade pós carteira de motorista e naquela terça chuvosa acordou meio barro - meio tijolo e resolveu sair de casa sem dar bom dia.

Do outro lado da cidade, Jorge que vinha de família cética e leitora de poesia de jornal de domingo, experimentava uma fase meio lobo. Deixou a barba crescer e seus cabelos estavam um pouco mais animados como se quisesse realçar um cheiro natural de testoterona. Mas não foi até aquela terça chuvosa no Starbucks de Ipanema que Jorge pode reparar o olfato sensível de certa moça praquela imposição de macheza toda.

Marília se ocupava de decidir se pediria leite de vanila no café ou não e sentiu uma vontade súbita de olhar pra trás. Jorge estava ali encarando sua nuca e agora surpreso por ser pego em flagra ficou inquieto sem saber o que fazer com sua curiosidade. Marília não entendeu a reação daquele homem e tornou a olhar pra trás em busca de pistas. Encaram-se desavergonhadamente por 3 segundos e a crítica os posicionou de volta na fila. Jorge sentiu o cheiro que vinha do cabelo loiro de Marília. Nunca se atraia por loiras, são sempre tão aguadas, mas dessa vez se pegou com vontade de enfiar o nariz naquelas mexas amareladas. Se inclinou de leve num ato corajoso. "Madeira", pensou. Marília então passou a mão pelo cabelo e esbarrou com o nariz de Jorge quase descansado ali.

- Desculpa!, disse Jorge constrangidíssimo. Desculpas, eu não... eu ...foi mal.

Marília observou a cara de pau daquele homem barbudo e ficou surpresa com sua falta de susto. Voltou-se pra frente e deu um passo pra trás - em um ato mais abusado que corajoso- encaixando sua nuca no rosto de Jorge, que recebeu aquele passo como uma permissão sincera, não sentiu mais culpa ou constrangimento, agora só respirava fundo.

- MARÍLIA TALL CAFÉ VANILA! gritou a atendente.

Marília buscou seu pedido, sentou-se em uma poltrona confortável, puxou um livro pra inglês ver e esperou alguma coisa. Jorge foi o próximo e além do café habitual levou um muffin de goiabada para viagem. Não se sentaria ali, iria embora com pressa atrasado para algum momento importante, uma reunião talvez.
Passou pela poltrona e já na janela do lado de fora a olhou novamente. Marília sentava com a coluna ereta quase tensa e aquela última troca de olhares deixaria um incômodo. Jorge seguiu seu caminho de forma automática e agora quem se inclinava era Marília, amassada no vidro da janela ainda pode vê-lo arrancar pela Farme de Amoedo em um Fox vermelho.

Tempos depois Marília já não tinha a lembrança do rosto de Jorge. Agora era pedagoga, dava aula pra crianças em fase de alfabetização, vivia cheirando a trakinas e com massinha de modelar embaixo das unhas. Namorou um rapaz chamado Felipe por uns meses e sem se perceber pedia que ele deixasse a barba crescer com frequencia.

Em uma noite de quinta, por insistência das amigas, saiu para beber em um bar no Baixo Botafogo. Não era de seu costume, não quebrava a rotina com facilidade. Marília não pode evitar o descontrole alcólico e acordou na caçamba de uma D-20 cabine simples quente de sol, com a calcinha pelos tornozelos no aterro do Flamengo. Sua bolsa estava ali com seus pertences e segundo depoimentos de uma amiga, Marília saiu de carona com o magrelo playboy da mesa ao lado por livre e espontânea vontade. Com o cabelo em desalinho e uma ressaca moral fortíssima, Marília calçou o sapato e foi embora sem conferir se havia alguém na cabine.

Caminhando embaixo de sol, Marília sentiu sua vida encolher. "Um passo pra trás", pensou exigente e ao quase ser atropelada por um Fox vermelho lembrou que daquela terça chuvosa em diante passara a  procurar o rosto esquecido de Jorge dentro de todos os Foxes vermelhos com/sem bagageiro que cruzavam seu caminho. Incondicionalmente, era quase uma superstição.
Sem quebrar protocolo algum, Marília não abriu exceção praquela manhã torta e ao atravessar fora do sinal na Almirante Tamandaré distraída em busca de um táxi vazio se perdeu em idéias inférteis olhando através do para brisa do seu algoz, que conseguiu frear a tempo. Estava tão distante de si que não pode reparar o Siena branco que vinha atrás com Jorge no volante já sem barba e aborrecido por não lembrar se aquela loira amadeirada do Starbucks tinha uma ou duas pintas no pescoço.