terça-feira, 6 de setembro de 2011

Otária.


Dia dos Pais. Metrô. Baldeação da linha verde para amarela. Estácio. Carro vazio e parado esperando mais uma leva de passageiros vindos da linha verde. Ana com seu IPod ouvindo “Love and Marrige” por Frank Sinatra. Ana senta-se em um bloco de quatro cadeiras, na segunda da direita. Na extrema esquerda, Mirela com o cabelo levemente desarrumado, vestido florido e algumas bolsas na mão. Final de campeonato carioca.
                   
Mirela (ignorando o IPod de Ana) – Hoje o metrô ta vazio, né? Achei que não fosse conseguir sentar, ta sempre tão cheio.

Ana (com o IPod no ouvido) – Uhum.

Mirela – É que ta sempre cheio...

Ana – ...

Mirela – Você acha que daqui à Coelho Neto são 40 minutos mesmo? Foi o que me disseram...

Ana sorri simpática mas sem ouvir muito o que Mirela diz

Mirela – Mas só se sair agora, senão vai demorar os 40 minutos mais o tempo que ficou parado, né.

Ana -...

Ana ainda de IPod e Mirela extremamente comunicativa na intenção de desabafar algo.

Mirela – Meu pai que mora em Coelho Neto. Foi pra lá depois que se separou da minha mãe. É longe, é um saco, mas hoje é dia dos pais, então vamos almoçar juntos. Você ta indo ver seu pai?

Ana (que só ouviu a última frase) – Não, to indo ver o jogo do Flamengo. Meus pais não moram no RJ.

Mirela – Na verdade eu ia jantar com ele porque dormi na casa do meu namorado que chegou de viagem ontem à noite, mas a gente brigou e eu liguei pro meu pai e pedi pra transferir a janta pro almoço. Você não vai ver seu pai hoje?

PAUSA


Ana -... Não.

Mirela – Por que não?

Ana – Meus pais não moram no RJ.

TEMPO

Mirela – Pra você ver como ele é safado. Eu não entendi nada daquele papo no início, depois foi ficando estranho. Ele veio com umas perguntas que não iam dar um caldo bom. De cara eu vi que tinha alguma coisa errada.

Ana começa a se interessar pelo papo

Ana – O almoço com o seu pai?

Mirela – Não, o meu namorado! Passou três meses fora e quando chegou ontem a noite veio me perguntar se eu tinha conhecido alguém, se eu tinha me interessado por alguém enquanto ele tava fora.

Ana – Se ele perguntou...

Mirela (quase cortando Ana) - Pois é! Mas eu ia fazer o quê? Mentir? Falei pra ele que me interessei por meu instrutor lá da firma, entendeu? Que a gente se viu todo dia, entendeu? Que ele me levou pra jantar SIM algumas vezes e que uns beijos rolaram também, sabe? Eu ia mentir? Eu ia mentir pro meu namorado, meu cúmplice, meu parceiro que eu não via há três meses?

Ana – Não sei, talvez...?

Mirela (já exaltada) – Pois é, talvez!

TEMPO

Ana – Mas você falou?

Mirela (imediatamente, quase cortando Ana) – Falei.

TEMPO

Ana – E o que ele disse?

Mirela murmura alguma coisa e faz um gesto com a mão dando entender que ela não quer falar sobre o assunto, dramática. Ana recua no assento, um pouco decepcionada em não saber como a história termina. Depois de um tempo Mirela se recompõe e resolve falar


Mirela - Ele disse que sabia, que sentiu uns treco, calafrio, dor de barriga, sei lá o que mais e sabia que era a dor da traição nascendo nele. Disse também que se apaixonou perdidamente por uma colega de trabalho, mas como não sabia se ia dar certo ou não, resolveu fazer nada. Não pegou, não beijou, nem em cima deu. Mas não tinha como não me contar porque ele acredita que as coisas tem que ser ditas e discutidas e sem segredos nosso amor durará por mais tempo, mas eu acho que depois disso acabou. O que você acha?

Ana respira e se mexe na cadeira como quem vai começar a falar, mas Mirela, angustiada, a corta.

Mirela – Porque se não acabou eu to enrolada, entendeu? Eu to toda desarrumada, olha só! Coloquei a mesma roupa de ontem, liguei pro eu pai e vim-me embora. Me senti ultrajada, expulsa de lá. Eu ia fazer o quê? Ficar olhando pra cara dele até a dor da traição voltar? Não... me senti desonrada, pequena, estrupício, urubu do presépio. Arroz. Sabe arroz? Arroz.

Metrô para. Estação de Ana. Ana se levanta, vai até a porta, saindo.

Ana – Otária.

Sai.

Fim.

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