quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Apneia Fantástica de Ramozin


-Não que se possa mensurar o tamanho da entrega de cada um, mas exatamente por isso, a entrega deveria ser considerada um ato sacro. Algumas situações mereciam ser proibidas de existir-  

Ramozin acordou naquela manhã num susto. O ar estava espesso e mais denso que o normal. Uma penumbra esbranquiçada cobria seu quarto, ainda olhou pela janela e percebeu que o céu estava baixo. Um beija-flor o encarava, mas sua cabeça latejava e com os olhos envesgados não houve consciência para estranhar um beija-flor pairando na janela do 18° andar.   
O Gato Negro no criado mudo estava pelo último terço, na barra de chocolate a silhueta dos seus dentes. Na bancada papéis amassados, canetas coloridas, revistas, impressões, rascunhos. Em meio a todos, um rabo de peixe se perdia em mar de traços e pó de borracha.
Sentou-se e buscou o celular. “Vivo?”, “Sonhei contigo”, “Dá pra me deixar em paz?” perguntavam. Apoiou o aparelho na cama e uma onda súbita de choro o tomou intensamente. Não sabia dizer exatamente porquê chorava, mas a pressão na sua nuca era imensa e resolveu não prender, pelo menos dessa vez não tinha como. “Olhos embotados de cimento e lágrima”, pensou. Enxugou o rosto após alguns soluços e fingiu estar inteiro para não adentrar assuntos que julgava desnecessários para qualquer outro que não a si mesmo.   
Ramozin era um homem interessante, mas teimava em fazer escolhas ruins. Não que sua intenção não fosse nobre, mas suas atitudes certamente não eram. Na burocracia da vida era um CPF exemplar: trabalhava duro, exigia de si, dividia coisas em parcelas eficientes, seus passos condiziam com suas pernas. Cumpria as funções de filho/sobrinho/neto com presença relativa, e se não era o corpo, um cheque o representaria para acalmar os aflitos. Não era uma pessoa fria, mas a individualidade armara acampamento no seu cotidiano. Tinha vocação para a solidão e preservava seu espaço, como qualquer bom leão. Sua crença maior era o suor. A fé até passou por sua adolecência, mas não foi feito para acreditar. Apenas agia de forma fixa, se enroscando no que esboçava interesse, principalmente se envolvesse um par de olhos claros. Então enroscava-se inevitavelmente.
Entretanto Ramozin nunca entendeu a responsabilidade de envolver alguém, o fazia de forma automática. Não tinha maturidade emocional, então fazia e depois que fazia não sabia mais o que fazer. Assim pulava de colo em colo, acumulando funções nas vidas alheias sem necessariamente ter a consciência disso. Despertava afetos sem intenção de atendê-los, e passado o prazer restava a consciência - e o celular - que lhe incomodavam com pendências emocionais espalhadas por aí. Já acumulara várias delas, já não conseguia dar conta de todas, já enroscara a corda no pescoço de forma lenta; agonizava em suas próprias decisões: “Mais eficaz era tomar um gole de veneno”, refletia. E agora mais que nunca precisava emergir.
Dentro de si uma vibração nascia. Olhou aquele rabo de peixe infindo desenhado no papel e sentiu inveja. Escorregava a ponta dos dedos pelas linhas e desejava deslizar pra longe de si, agarrar-se na cauda de uma sereia e se permitir fluir.
Ouviu som de mar. Estava no meio de uma metrópole, não havia praia em um raio de 90km. Não deu crédito aos ouvidos, então um arrepio caminhou por seus braços. Desconfiou da janela aberta, mas antes de conseguir fechá-la, o estrondo de uma onda quebrou em seus ouvidos. Ouviu seu nome em uma voz doce e distante... “Não”, decidiu. Sacodiu a cabeça, esfregou o rosto e, caminhando ainda sóbrio para o banheiro pode checar as mensagens no celular, que estava mais para um berço de bezerras famintas que um IPhone...
Mas veja, não era sua culpa e sim sua natureza. Ramozin era desses exemplos de loucura que vêm de casa e nos está instrínseco em tal grau que nem percebemos sua influência em nossos atos. Ramozin fora programado para ser confuso, não sabia ser um problema apenas seu e agora começava a vislumbrar seu futuro com mais concretude. Não queria mais ser o que já era, ainda com vontades fixas e comportamentos cíclicos, cultivava verdadeiro desconforto à mudanças, principalmente internas. Difícil mover-se do exato meio do olho do furacão, onde é o ar é parado. Um passo para o lado e a ventania te desequilibra, mas perder o controle nunca estava em seus planos. Então, no olho permaneceria enquanto pudesse, agarrado ao chão.
Entrou no chuveiro, abriu a torneira e a água que dessa vez lhe batizava era salgada. Escorreu por sua língua e ao sentir o gosto salobro Ramozin deu um pulo desesperado, derrubou todos os shampoos da prateleira do box, correu nu pelo corredor até seu quarto, que continuava coberto por uma névoa incomum, cada vez mais leitosa. Parou desorientado, observou as mãos e pode perceber a pele entre seus dedos um pouco mais fina. Pareciam membranas. Então se examinou como podia e percebeu mais algumas metamorfoses em seu corpo. A água do banho fora absorvida por sua pele quase instantaneamente, não estava mais molhado. Pequenos cortes em seu pescoço abriam brânquias, seus pés estavam mais pontudos. Olhou para a bancada e o rabo de peixe esboçado agora tinha cabeça; um olho azul, um olho verde.
Ramozin estava surtado em novidades, não sabia o que fazer. Sentiu seu coração pulsar na garganta, dificultando sua respiração. Quando já se encontrava sufocado de boca aberta ouviu a voz doce chamar seu nome novamente, dessa vez com alguma melodia. “Ainda não”, teimou, como se soubesse o que estaria por vir. 
Seguindo o arrepio que domara sua espinha, Ramozin voltou para o chuveiro e agora queria transformá-lo num aquário. “Enquanto o gelo derrete, a água vai subindo” e conforme a água subia por suas pernas escamas brotavam, finalmente. Aquela transformação acontecia diante de seus olhos, doía e não havia nada que ele pudesse fazer. Quando a água atingiu sua cintura, não havia mais sexo entre suas coxas, suas pernas estavam unidas, era impossível se manter em pé e ao cair, mergulhou inteiro naquele pesadelo, deslizando pelo azulejo amarelado do banheiro como quem nunca fez outra coisa, senão deslizar.
Agora embaixo d’água respirava fundo... então nadou.
Atravessou sua casa, submerso. Já não se perguntava o porquê de tudo aquilo, não buscava uma resposta lógica pros acontecimentos. Sabia que era assim que deveria ser, era assim que já era. Da janela da sala pode ver o fundo do oceano onde seu prédio estava sediado, um azul maciço indesvendável. Pode reparar que toda sua rua estava embaixo d’água. Todo seu bairro. Viu o rapaz da academia que morava duas ruas pra baixo também transformado e nadando entre enguias. Uma outra conhecida nadava entre os prédios com um olhar negro abismal, a pele enrugada, cabelos falhos e ralos...
Um peixe cruzou seu olhar. Tinha um olho verde e um olho azul. Era o seu desenho que ganhava vida e o guiaria para longe dali. Sem repensar, Ramozin o seguiu veementemente e agora nadava também entre mulheres: Iaras, Jussaras, Janaínas... Era um mundo inteiro de ninfas perigosas, mentirosas, irresistíveis. Carregavam consigo náufragos, desorientados, marinheiros indecisos, homens mal resolvidos, ingênuos. Emitiam sons deliciosos e pertubadores, enroscavam-se nas correntes de água quente que cruzavam o fundo do mar, seduziam e aprisionavam quem ousasse encará-las. E como não encará-las vertiginosamente? Eram um vetor de atração poderosíssimo! Ramozin era familiar com a vida submersa, era amante da água salgada, sabia dos perigos dos âmbitos inconscientes do mar. Sentiu-se aliviado por estar ali embaixo, finalmente respirando fundo o sal que lhe fazia falta. Então entendeu que era feito de sal e que do mar não poderia se afastar. Filho e prisioneiro. Irmão e algoz. Castigo e calento. Fé e liberdade. “O que me falta?”, se perguntou. Então reconheceu a voz doce que chamava seu nome mais cedo e não pode evitar a hipnose: o som vinha da sereia mais intrigante que sua imaginação permitiria criar. Não saberia descrevê-la, era um ser sensorial e encantador, de cauda longuíssima que brotava, não de sua cintura, mas de sua cabeça. Se misturava em cabelos ondulados que boiavam em torno do seu corpo. Seus seios apontavam para o ego de Ramozin, eram como frutas maduras, estava completamente nua. Os olhos da ninfa eram o abismo que qualquer homem teme. Mas Ramozin não tinha mais medo. Sentia-se fortalecido por estar ali e quis chegar bem perto, absorto, embalado pela melodia dulcíssima que aquela criatura misteriosa emanava. 
Precisaria beijá-la, seria o último de sua vida. Aproximou-se irresponsavelmente, como uma vespa atraída para a luz. Magneticamente.
Podia sentir a pressão do corpo daquela criatura, era imensa, o atraia como um satélite se atrai para um planeta. Sugava o corpo de Ramozin com força, abusada. Ramozin sentia um misto de medo sedutor e excitação infantil. Sentia ânsia de vômito. Sentia febre. Sentia paixão. Sentiu que sucumbiria.
Nadou em sua direção, vidrado. Segurou seu rosto da forma mais doce que já tocara alguém. Sinapses fortíssimas invadiram seu cérebro em forma de choques. Fora eletrocutado. Envolto por uma moleza descomunal, desmaiou nos braços mais delicados que já tocaram alguém. Ainda pode sentir unhas penetrando a pele de suas costas, cabelos entrando por sua garganta, melodia invadindo seus ouvidos, olhos completamente revirados. Roubando seus sentidos, completamente envolvido e sem forças, foi beijado pela sereia com hálito de morte e morreu em seus braços, aprisionando sua alma ao fundo do mar para a eternidade.
Num delírio sufocante, acordou. Olhou em volta. O Gato Negro estava lá pelo último terço, os rascunhos, o rabo de peixe inacabado. Seu celular vibrou: “vivo?”, “sonhei contigo”, “dá pra me deixar em paz?” perguntavam. Largou o aparelho no criado mudo, juntou umas mudas de roupa e foi pro mar atrás da sereia de voz doce.

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